quarta-feira, 19 de junho de 2013

Máscaras e mascarados



Há um dos documentos mais relevantes que conheço sobre cinema: um filme “didático” feito por Rohmer para a televisão francesa sobre Louis Lumière, em que ele intercala trechos de seus filmes com um papo com os mestres Langlois e Jean Renoir. Em um determinado momento, Langlois nos dá a chave para compreender a complexa dialética mobilizada ali, e que tenta, pelos meios civilizados ( de la litote, comme d’habitude) que eram comuns aos três homens, desmistificar esta oposição, tão cara à crítica acadêmica, entre Lumière e Méliés. Ele nos lembra que Lumière “mandou” os operários saírem novamente da fábrica, porque a porta se fechava muito abruptamente e  a câmera não tinha tempo de “dar o tempo necessário” à captação daquela experiência lumpemproletária; fora o fato de que Lumière filmava num certo cadre ( limite espacial), num limite temporal ( devido à pobre sensibilidade à luz da película ortocromática), etc...Ele reencenava o espaço-tempo.

Todo cineasta sabe que o espaço que ele vê quando chega na locação não é o espaço da percepção ordinária, uno e contextualizado; é já um espaço pré-decoupado, pré-montado mentalmente- já “significativo”, proto-ficcionalizado. A prise de vue baziniana já carrega o selo do sentido e o filtro da magia. Um grande ( um dos maiores) filmes que trabalha esta dialética é Le sang des bêtes, de Franju, em que o lirismo e o horror contraem núpcias: o excesso de realismo da morte dos animais acaba por dar uma impressão de super-realidade ( surrealidade), por intercessão das mediações- as imagens dos arrabaldes “feéricos”de Paris. Feéricos no sentido de que estes nichos de clochards e crianças ao léu viram depósitos onde se acumula todos aqueles objetos encantados ( porque retirados da linha de produção de “troca” do capitalismo) que Rimbaud cita em Uma Temporada no inferno: refrões velhos, árias de ópera pitorescas, bonecas sem cabeça, etc ; objetos que, como as ruínas da capital francesa, inspiraram a Benjamin os collages , entre documentais e escatológicos ( mas há diferença, a esta altura?), de seu último livro-monumento.

Máscaras, de Noêmia Delgado ( 1976)  é destes filmes em que a dita oposição, desmascarada comme il fault, retoma o seu constelacionismo dialético: aqui, trata-se de fixar o olho “autopsista”, escrutinador e mecânico da câmera sobre as ficções, os jogos e as glosas do que acontece em torno.

Em cinema, arte onto-numinosa, basta saber ver para ver do que é feito o mundo: de mistério, maravilha e horror. É apenas isto o que todo grande filme nos sussurra e morde.

ps: e tem completo no youtube...

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Serial killer, Adachi 1969



A flânerie adquiriu no Ocidente uma aura- a aura!-, um stimmung fenomenogógico espectralmente utópico: nela  e por ela, o modus vivendi funcionalista da “divisão social do trabalho” capitalista era esterilizado: ao flertar com as vitrines e os transeuntes, deslocamo-nos e divergimo-nos , mas não apenas no espaço; diferimos, dessacralizamos o tempo que deveria ser destinado à produção, preenchido pelo modus operandi. Este diferir é democrático- ou antes: qualquer, casual, brincante. Serve ao artista, à criança, à puta, ao serial killer ( não seriam todos estes – antes da divisão social do trabalho, nosso vero vírus psicótico- flâneurs?). É isto que nos sussurram estas circunvoluções suburbanas, estas digressões inscritas sobre o cal e o concreto, estes mabusianos travellings fantasmas, estes devires-derivas: por aqui passou ( foi) um serial killer de  nome, identidade... ao filme pouco importa, como a qualquer ente digno de pronome: o seu espaço-tempo fantasma incrustou-se no espaço-tempo gregário e laboral dos que se apropriam da rua como meio- trajetória, via expressa, sarjeta- para fins que não lhes dizem respeito: gregários, laborais, quaisquer. Os travellings trânsfugas, os zooms estrábicos, os faux-raccords zuretas de Adachi tentam justamente inventariar este espaço ininventariável dos seres que habitam a cavidade, a fresta, a  réstia: crianças, mendigos, mortos,anjos e serial killers. E não é a estes zumbis ontológicos, grafittis do possível- nutridos com o sangue, o esperma e os pesadelos dos homens de bem e de ponto- que se destina toda arte digna de memorabilia?